“Ela nasceu de mim e renasceu do pai”
Doação de órgão possibilitou a reabilitação da pequena Sophia, de 4 anos
Por Lauriane Agnolin; Taiane do Carmo; Jorge Marcon e Elza Guerra
Os olhinhos marrons amendoados que parecem sorrir para a câmera pertencem à pequena Sophia da Silva Guimarães. Aos 4 anos de idade, e com toda carga de inocência que lhe são de direto pela infância que agora desfruta, ela parece entender, ainda que de forma inconsciente, a importância que a solidariedade possui. Prestes a completar 2 anos, a pequena sentiu o gélido da mesa de cirurgia se converter, novamente, em calor com o pulsar das veias e de uma nova vida que experimenta depois de ter parte do fígado transplantado.
Ainda em desenvolvimento no útero da mamãe Bruna Silva dos Santos, Sophia foi diagnosticada com uma patologia biliar que a obrigou a ser submetida à primeira cirurgia logo após os primeiros 30 dias desde que se acomodou no colo dos pais e no aconchego das mantinhas rosas. A cirurgia de Kasai, como conta Bruna, foi recomendada pela equipe médica pediátrica do Hospital São Vicente de Paulo (HSVP) junto a uma biópsia para investigar um possível tumor. O diagnóstico de câncer, no entanto, foi descartado. No lugar, os profissionais de saúde detectaram uma colangite – enfermidade que inflama os canais biliares, responsáveis por conectar o fígado à vesícula biliar. “Em novembro de 2016, nós descobrimos que ela tinha cirrose hepática, em grau leve ainda, mas que poderia desenvolver um grau mais elevado. O médico já nos avisou que a Sophia precisaria de um transplante”, revela Bruna.
A partir de então, ela e o marido, José Vilmar Guimarães, uniram-se aos médicos na busca por informações sobre doação de órgãos. “Na nossa cabeça, pensamos que os cirurgiões só fariam o transplante de um doador-cadáver. Mas, aos poucos, fomos conversando com o doutor e ele nos contou que poderia ser um doador vivo”, continua. Menos de três meses depois, em janeiro de 2017, o telefone do casal tocou.
“Olha, Bruna, nós precisamos conversar porque chegou a hora do transplante”, disse o gastroenterologista pediátrico Gustavo Castro. A surpresa pelo comunicado e pela urgência de ter um doador despertou um temor nos jovens pais. “A gente sabia que ia precisar de um transplante, mas não que seria tão rápido. Pensamos que seria 3 ou 4 anos mais tarde, quando a Sophia já estivesse grande”, relata Bruna. A apreensão, somada à recente maternidade, pode ser explicada pelo amor sentido em uma segunda gestação, depois que primeira foi interrompida involuntariamente com um aborto espontâneo. Se a aflição pudesse ser transcrita em números, ela estaria na planilha da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos. Segundo a ABTO, cerca 660 crianças esperam por um órgão no Brasil. Desse total, 55 pequenos pacientes aguardam por um doador compatível de fígado, assim como a pequena Sophia necessitou.
A angústia de Bruna, contudo, não durou muito tempo. “Ainda em janeiro, o Vilmar fez todos os exames em Porto Alegre e ele era um doador compatível. Então, a médica já disse que o transplante dela iria ser em 13 de fevereiro de 2017. A partir desse momento eu me vi louca”, recorda. A coordenadora de Centro de Captação de Órgãos do HSVP, Fabiana Dal Conte Buzatto, explica que o fígado é um órgão que se regenera e, portanto, pode ter uma parte destinada à doação com o doador ainda em vida. “Assim como o fígado, o rim, parte do pâncreas e a medula podem ser doados e pode-se levar uma vida normal, dentro dos cuidados médicos necessários após a doação”, declarou durante uma coletiva de imprensa realizada na Faculdade de Artes de Comunicação da Universidade de Passo Fundo (FAC/UPF). Segundo Fabiana, a fila de espera para um transplante aumentou na região de abrangência do HSVP. Clique na imagem e assista um trecho da entrevista:
“Você já faz o seu trabalho como mãe e deu a vida a ela. Agora é a minha vez”
A voz embargada da mãe Bruna se soma às lembranças da mulher que também é, e da força que precisou canalizar durante a dupla cirurgia daqueles que não eram, naquele momento, apenas pacientes em um centro cirúrgico, mas os amores da sua vida. Das crianças que ingressam na fila de espera por um órgão, ainda segundo a ABTO, 806 figuraram nas estatísticas de mortalidade pediátrica durante o primeiro semestre deste ano. Mesmo não sendo o caso de Sophia, cujo doador foi o próprio pai em vida, segundo a entidade, 47% das famílias se recusam a doar os órgãos de familiares diagnosticados com morte encefálica. “Os riscos para o doador são muito pequenos. Ainda tem muito preconceito a respeito disso”, acredita ela.
As 12h de procedimento e a doação do órgão deram, portanto, uma oportunidade de desenvolvimento à menina e ressignificou os laços familiares. “Eu logo falei que queria doar, mas meu marido disse que ele ia ser o doador porque ‘eu já estava fazendo meu trabalho como mãe e tinha dado à luz’. Dissemos que a Sophia é o nosso bebê arco-íris porque depois da tempestade ela chegou”, externa. Os cuidados, agora, são com a medicação contínua necessária a todos os pacientes submetidos ao transplante de órgãos. Bruna narra ainda que, antes da autorização para a cirurgia, agentes de saúde e membros do Conselho Tutelar fizeram visitas à casa da família para certificarem-se de que “teriam condições estruturais de cuidado no pós-operatório”. “A minha filha e o meu marido estão bem e felizes. A Sophia, mesmo com 4 anos, sempre me pergunta ‘mamãe, eu posso comer isso?’ às coisas que não são comuns à alimentação de rotina”, orgulha-se.
“Ela nasceu duas vezes: quando ela, de fato nasceu, e quando ela fez o transplante”, sintetiza Bruna. Para ela, a concepção de doação de órgãos sofreu uma alteração depois que o ato proporcionou uma sobrevida à filha. Agora ativista pela causa, ela assegura ir em palestras e hospitais para abordar o tema junto às demais famílias. “Doar órgão é dar vida a outras pessoas. Com um olhar ao outro, naquele momento de dor, a família se sensibiliza e permite que a vida continue em outro corpo”, declara.
Confira também a reportagem em áudio: